Vôo em Formação
1) "Erar é umano".
2) Voar é com os pássaros.
3) Depois de milhares ou milhões de anos o homem conseguiu voar.
4) Insatisfeito, inventou de voar em bando.
Agora vamos tentar ligar cosa com cosa, como diria o Deoclécio.
A verdade é que ninguém é perfeito e acaba fazendo suas cagadinhas, adas e onas.
No contexto geral da vida, às vezes uma baita burrada causa pouco prejuízo; noutras uma cagadinha de nada faz um estrago daqueles.
Em aviação todo erramos. Felizmente a maior parte dos erros que cometemos não são pecados mortais. Mas certos erros não perdoam e custam muitíssimo caro. Assim, o jeito é a gente ir evitando o máximo possível deles.
Nunca procurar situações em que eles estejam possam nos surpreender é uma das melhores formas de evitá-los.
Pois conseguimos realizar o grande sonho de voar!
Somos quase-pássaros. E eles também erram.
Nós que não nascemos com esse dom, que o adquirimos durante a vida, com muito suor, pilas gastos e lágrimas, deveríamos nos conscientizar da verdadeira situação, no que respeita ao ato de voar: usurpamos uma vocação do estoque da mãe Natureza. Só que ela cobra o preço por essa usurpação. Não admite que cometamos aqui a mesma quantidade de erros, nem que cheguem, sequer, perto da gravidade dos que praticamos pela vida a fora.
Voar é maravilhoso e dizer isto para os que me lêem é até uma redundância.
Se é maravilhoso, por que não curtimos essa maravilha e não paramos de aprontar?
Em meus vôos, como muitos de vocês, volta e meia me deparo com urubu, garça, joão-grande, voando calmo, gracioso, tranqüilo, até que vem aquela coisa rápida e barulhenta esculambando toda aquela paz.
Fico imaginando o monte de palavrões da língua deles que devem usar quando a gente passa ...
Mas, capaz que o ser humano fique contente com o que já tem! Se anda a pé, quer uma bicicleta. Se tem bicicleta, quer moto. Tendo moto sonha com um carro, e caro. Se tem o dito busca um ultraleve e conseguindo, dá um jeito para que o ultraleve seja um avião de altíssimo desempenho, mesmo que não tenha a cultura aeronáutica indispensável para voar numa máquina dessas.
E nessa busca de desafios tem gente que cai na tentação de voar em grupo.
Voar sozinho já não é uma coisa tão fácil e aí, justamente, está o erro: o de se pensar que voar não é difícil. Muito novato, com qualquer duzentas horas de vôo já pensa que é piloto. Pensando que é, não resiste à tentação de provar que é melhor do que ou igual aos veteranos.
Voar é difícil, sim, principalmente para os que sabem. O vôo barbadinha é uma sereia que nos encanta e tem gente que não consegue ignorar seu chamado.
Se voar sozinho não é assim, tão simples, vôo em formação, é muito mais difícil, pois ali temos que nos preservar dos próprios e dos erros alheios. Quem estudou progressões matemáticas sabe: num vôo em formação as possibilidades de zebra crescem em progressão geométrica, pois as minhas chances de erro, juntadas às de cada um dos alas eleva o perigo a um grau elevadíssimo, desculpando o trocadilho.
É por isso que o vôo em formação somente é permitido a quem já tenha feito um curso para tal. Quem não fez, que não se meta. A vida é muito frágil para a gente cutucar a cobra com varinha curta.
Nossos colegas talvez nem tivessem consciência do perigo a que se expunham quando decidiram voar em formação. Podem até haver pensado que bastava manter uma certa separação e estaria tudo bem. Pois o segredo está justamente aí, em manter a separação segura e é para isso que se faz cursos.
Nunca voei em formação, apenas aproximei-me um pouco de um outro ultraleve, não gostei da experiência e me mandei a la cria, que não tenho meu couro para negócio.
Também tenho muito medo de voar nas famosas festas aviatórias. Vem gente de tudo quanto é lado, em tudo quanto é avião, com tudo quanto é nível de pilotagem. Infelizmente, volta e meia dá a lógica.
Fico meio constrangido em dizer que, ao ver o programa do último ENU, observei a programação de uma revoada aos canyons, ficando com os cabelos em pé de medo com o que pudesse acontecer. A lista de inscritos era de 143 aeronaves. Digamos que cem delas fossem participar da tal revoada. Sabem o potencial de risco de cem aviões das mais diferentes performances e velocidades, pilotados por gente que não se preparou para a manobra, voando numa região montanhosa, sujeita a turbulências orográficas e mudanças bruscas de tempo? TNT pura. Parece que por restrições impostas por São Pedro a tal revoada não saiu.
No Rio de Janeiro bastaram dois ultraleves próximos, com turbulência para acontecer o pior.
Tudo envolve riscos. Voar é seguro e perigoso ao mesmo tempo. É seguro em relação a andar no trânsito louco de nossas ruas e estradas. É perigoso em relação às falhas da máquina e, mais, ainda, nossas falhas.
Nietzke dizia que "Viver é muito perigoso", no que foi seguido por Guimarães Rosa.
Tem a música aquela que fala que a gente mal nasce, já começa a morrer.
São verdades contra as quais nada podemos fazer.
Mas não devemos tornar o ato de viver, que já é perigoso, mais perigoso ainda.
Vamos deixar a natureza seguir seu curso e que nos leve quando for chegado o momento, nunca porque resolvemos adiantar o relógio.
sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011
sexta-feira, 11 de dezembro de 2009
Fazendo a Coisa Certa
Esse humilde escrevinhador, piloto privado, mero motorista de ultraleves básicos há muito bate na tecla de que está havendo um certo desvio de finalidade na aviação leve e experimental.
A gente, que iniciou a carreira de manicaca maltratando os resistentes Paulistinhas, com suas “vertiginosas” setenta milhas de cruzeiro, motorzinho de 65, 90, no máximo 108 hps, fica estranhando quando alguém sem mais aquilo compra um RV 9, 10, 1001, sei lá qual o último grito, faz um cursinho a toque de caixa e sai pelo mundão, amparado no GPS, PA, stormscope, essas parafernálias todas, achando que os equipamentos manterão o pássaro voando.
Aí o sujeito faz navegações longuíssimas, enfrentando ou arriscando-se a enfrentar tempo adverso, sobre o qual não tem a mínima noção, passando por geografias totalmente estranhas, sempre confiado nos poderes da aviônica a bordo.
Claro que o caso do padre aquele, que se pendurou nos balões e achou que o GPS daria sua posição ao mundo, esquecendo-se de aprender a operar o dito aparelhinho milagroso é um exagero, mas muita gente está confiando demais na tecnologia embarcada e de menos no velho “pé e mão”.
Nada tenho contra proprietários e pilotos dessas excelentes máquinas. Confesso que tenho um sonho: fazer acrobacia.
Nunca fiz um parafuso até hoje.
Explico porque:
Para fazer o tal parafuso com segurança, necessito de uma aeronave adequada, um instrutor experiente, dinheiro para pagar as horas de vôo e tempo disponível para o curso. Aos meus dois leitores, que já me acompanham há mais tempo, não preciso repetir que quem não é rico, quando consegue dinheiro para fazer alguma coisa está embretado com o tempo, pois se parar de trabalhar, vai faltar pila e vice-versa ... Assim, como nunca tive tempo e dinheiro sobrando, acho que somente vou fazer acrobacia com asas de anjo, ou morcego … lá nas eternidades.
Esse negócio de ser acrobata com dicas de happy hour é caminho certo para deixar o meu amigo Beto (dono de funerária) mais sorridente …
Sou apaixonado por aviação desportiva, mas não executei até hoje uma única manobra acrobática porque não estou bem preparado teórica e praticamente. Como gosto da vida, da minha filha, de meus amigos, de minha querência, das mulheres que me aturam, fico no vôo feijão-com-arroz e vou vivendo …
Ainda bem que o Caputo também demonstrou sua preocupação. Chamo-o assim, sem senhoria, porque tenho um princípio no tratamento com nossos parceiros de aviação: ou somos uma comunidade irmanada igualitariamente na mesma paixão ou ficamos no cerimonial onde alguns são os senhores e outros os servos, no que não acredito.
Chamá-lo sem tratamento especial não me dispensa de colocar as coisas nos devidos lugares: embora não o trate por Cel., é claro que lá não chegou por acaso e, se pilotou (ou pilota) caça, manicaca é que não é. Evidentemente respeito e muito a sua experiência e preparo.
É justamente por isso que fico feliz ao saber que gente muito bem preparada também já se deu conta dos riscos a que se estão expondo nossos amigos ao pilotarem aviões cada vez mais velozes, com mais equipamentos. Uma coisa é um manicaca, piloto de básico, meter o bedelho onde não é chamado, outra é quando uma pessoa realmente preparada emite sua opinião, muito bem embasada.
Repito: um avião rápido e acrobático acho que é sonho de todos nós. Mas ele tem um inconveniente: nos leva dentro. Não é um aeromodelo que podemos espatifar no solo e ficar apenas nas contas com o prejuízo.
Voar é maravilhoso. Só tem uma coisa melhor do que isso ou equiparada e todos sabem qual é. Nos dois casos, se não nos preocuparmos com a segurança, o prazer pode custar muito caro …
Querem comprar um avião top de linha, rápido, equipadíssimo? Comprem. Mas antes de deolar, aprendam a voar o dito, não se achando habilitado apenas porque o caixa permitiu a compra.
Voei uma única vez em RV, achei o avião realmente muito bom, surpreendentemente com baixa velocidade de estol, aproximação tipo um Tupi e pouso curto, para as características de seu vôo em cruzeiro.
E aí mora o perigo: o novato achar que a baixa velocidade de aproximação, a curta decolagem, a docilidade de comandos já garante um vôo seguro.
Mas não vamos esquecer que o bichinho, mal sai do solo vira um foguete e que qualquer distração a baixa altura pode se transformar num reboliço dos infernos. Um coisa é dar-se um quiproquó num cabinho, com suas 40 milhas, pouca massa e conseqüente rápida desaceleração. Outra é enfiar uma bequilha no chão a 120 milhas, pilonar, etc.
Confesso que melhorei muito minha pilotagem, fazendo o caminho inverso. Depois de já estar bem ambientado nos homologados, entrei na aviação leve, e as pandorguinhas me ensinaram o que se tem que fazer com os pés e as mãos para não ficar “de a pé”. Se bem que algumas vezes fiquei …
Mesmo assim, toda a vez que vôo um homologado e me passam os comandos, peço ao piloto que fique atento, pois como diz a música gaudéria “tchê, como estou destreinado ...”
O outro aspecto que o Caputo muito bem abordou é o da tal instrumentação e desejo de voar IFR. Numa de minhas últimas escrevinhações contei o sufoco em que estava junto, como saco, quando um novato inventou de se embrenhar formação a dentro. Nos safamos, mas até hoje ele sabe que está em dívida comigo, pois colocou o couro dele e o meu na reta …
Voltando ao Forum da ABUL, vejo seguidamente amigos que estão embretados no meio de algum viagem para festa ou encontro. Ora, se ficam presos no meio do caminho é porque saíram sem as condições ideais para o vôo que pretendiam fazer. Arriscaram a chegar ao destino, a ficar nalguma alternativa, a ficar nalgum campo, com sorte, nalgum mato, morro ou cratera, com azar.
Com a mãe Natureza não se brinca. Aqui onde moro, neste verão tem dado cada temporal … Nunca vi tanta árvore derrubada pela força dos ventos. Imaginem uma pandorguinha ou até mesmo um avançado brigando com vento, raios, granizo e tudo o mais …
Aviação desportiva é aviação desportiva. Não é aviação geral, executiva, comercial ou de transporte.
Mas, mesmo ficando meramente na área esportiva, vamos fazer uma comparação com o esporte mais comum para os brasileiros, o futebol: se o sujeito é um perna-de-pau, se for se meter a craque, vai se dar mal. No futebol é pior: quem não leva jeito, por mais que freqüente escolinhas, etc., nunca chegará a Pelé.
Na aviação, muitas coisas ou até a maior parte delas são fruto de treinamento, esforço, repetição. O próprio voar já é uma ação contrária a tudo que é natural em nós. Temos que domesticar nossos instintos, às vezes ir contra eles, usar a razão, repetir, repetir, até que nossas ações se constituam como que num outro instinto . E isso não se consegue com saldo gordo na conta. Ajuda a pagar as horas e mais horas de treinamento, mas não é a varinha mágica.
Ao que parece, nenhum dos acidentes graves que tivemos em 2009 envolveu os básicos.
Não deve ser meramente acaso. Tampouco significa que os pilotos de básicos sejam ases. Pode apenas demonstrar que estejam fazendo a coisa certa: subindo a escada pelo degrau de baixo.
Não é vergonhoso ter humildade. Não faz mal à saúde pilotar um basiquinho, depois um avançado. Preserva o bem-estar assumir que o reluzente avião hangarado ainda deve ficar repousando ou ser pilotado apenas por quem realmente esteja apto.
Mas que deve ser gostoso fazer acrobacia, isso deve ...
A gente, que iniciou a carreira de manicaca maltratando os resistentes Paulistinhas, com suas “vertiginosas” setenta milhas de cruzeiro, motorzinho de 65, 90, no máximo 108 hps, fica estranhando quando alguém sem mais aquilo compra um RV 9, 10, 1001, sei lá qual o último grito, faz um cursinho a toque de caixa e sai pelo mundão, amparado no GPS, PA, stormscope, essas parafernálias todas, achando que os equipamentos manterão o pássaro voando.
Aí o sujeito faz navegações longuíssimas, enfrentando ou arriscando-se a enfrentar tempo adverso, sobre o qual não tem a mínima noção, passando por geografias totalmente estranhas, sempre confiado nos poderes da aviônica a bordo.
Claro que o caso do padre aquele, que se pendurou nos balões e achou que o GPS daria sua posição ao mundo, esquecendo-se de aprender a operar o dito aparelhinho milagroso é um exagero, mas muita gente está confiando demais na tecnologia embarcada e de menos no velho “pé e mão”.
Nada tenho contra proprietários e pilotos dessas excelentes máquinas. Confesso que tenho um sonho: fazer acrobacia.
Nunca fiz um parafuso até hoje.
Explico porque:
Para fazer o tal parafuso com segurança, necessito de uma aeronave adequada, um instrutor experiente, dinheiro para pagar as horas de vôo e tempo disponível para o curso. Aos meus dois leitores, que já me acompanham há mais tempo, não preciso repetir que quem não é rico, quando consegue dinheiro para fazer alguma coisa está embretado com o tempo, pois se parar de trabalhar, vai faltar pila e vice-versa ... Assim, como nunca tive tempo e dinheiro sobrando, acho que somente vou fazer acrobacia com asas de anjo, ou morcego … lá nas eternidades.
Esse negócio de ser acrobata com dicas de happy hour é caminho certo para deixar o meu amigo Beto (dono de funerária) mais sorridente …
Sou apaixonado por aviação desportiva, mas não executei até hoje uma única manobra acrobática porque não estou bem preparado teórica e praticamente. Como gosto da vida, da minha filha, de meus amigos, de minha querência, das mulheres que me aturam, fico no vôo feijão-com-arroz e vou vivendo …
Ainda bem que o Caputo também demonstrou sua preocupação. Chamo-o assim, sem senhoria, porque tenho um princípio no tratamento com nossos parceiros de aviação: ou somos uma comunidade irmanada igualitariamente na mesma paixão ou ficamos no cerimonial onde alguns são os senhores e outros os servos, no que não acredito.
Chamá-lo sem tratamento especial não me dispensa de colocar as coisas nos devidos lugares: embora não o trate por Cel., é claro que lá não chegou por acaso e, se pilotou (ou pilota) caça, manicaca é que não é. Evidentemente respeito e muito a sua experiência e preparo.
É justamente por isso que fico feliz ao saber que gente muito bem preparada também já se deu conta dos riscos a que se estão expondo nossos amigos ao pilotarem aviões cada vez mais velozes, com mais equipamentos. Uma coisa é um manicaca, piloto de básico, meter o bedelho onde não é chamado, outra é quando uma pessoa realmente preparada emite sua opinião, muito bem embasada.
Repito: um avião rápido e acrobático acho que é sonho de todos nós. Mas ele tem um inconveniente: nos leva dentro. Não é um aeromodelo que podemos espatifar no solo e ficar apenas nas contas com o prejuízo.
Voar é maravilhoso. Só tem uma coisa melhor do que isso ou equiparada e todos sabem qual é. Nos dois casos, se não nos preocuparmos com a segurança, o prazer pode custar muito caro …
Querem comprar um avião top de linha, rápido, equipadíssimo? Comprem. Mas antes de deolar, aprendam a voar o dito, não se achando habilitado apenas porque o caixa permitiu a compra.
Voei uma única vez em RV, achei o avião realmente muito bom, surpreendentemente com baixa velocidade de estol, aproximação tipo um Tupi e pouso curto, para as características de seu vôo em cruzeiro.
E aí mora o perigo: o novato achar que a baixa velocidade de aproximação, a curta decolagem, a docilidade de comandos já garante um vôo seguro.
Mas não vamos esquecer que o bichinho, mal sai do solo vira um foguete e que qualquer distração a baixa altura pode se transformar num reboliço dos infernos. Um coisa é dar-se um quiproquó num cabinho, com suas 40 milhas, pouca massa e conseqüente rápida desaceleração. Outra é enfiar uma bequilha no chão a 120 milhas, pilonar, etc.
Confesso que melhorei muito minha pilotagem, fazendo o caminho inverso. Depois de já estar bem ambientado nos homologados, entrei na aviação leve, e as pandorguinhas me ensinaram o que se tem que fazer com os pés e as mãos para não ficar “de a pé”. Se bem que algumas vezes fiquei …
Mesmo assim, toda a vez que vôo um homologado e me passam os comandos, peço ao piloto que fique atento, pois como diz a música gaudéria “tchê, como estou destreinado ...”
O outro aspecto que o Caputo muito bem abordou é o da tal instrumentação e desejo de voar IFR. Numa de minhas últimas escrevinhações contei o sufoco em que estava junto, como saco, quando um novato inventou de se embrenhar formação a dentro. Nos safamos, mas até hoje ele sabe que está em dívida comigo, pois colocou o couro dele e o meu na reta …
Voltando ao Forum da ABUL, vejo seguidamente amigos que estão embretados no meio de algum viagem para festa ou encontro. Ora, se ficam presos no meio do caminho é porque saíram sem as condições ideais para o vôo que pretendiam fazer. Arriscaram a chegar ao destino, a ficar nalguma alternativa, a ficar nalgum campo, com sorte, nalgum mato, morro ou cratera, com azar.
Com a mãe Natureza não se brinca. Aqui onde moro, neste verão tem dado cada temporal … Nunca vi tanta árvore derrubada pela força dos ventos. Imaginem uma pandorguinha ou até mesmo um avançado brigando com vento, raios, granizo e tudo o mais …
Aviação desportiva é aviação desportiva. Não é aviação geral, executiva, comercial ou de transporte.
Mas, mesmo ficando meramente na área esportiva, vamos fazer uma comparação com o esporte mais comum para os brasileiros, o futebol: se o sujeito é um perna-de-pau, se for se meter a craque, vai se dar mal. No futebol é pior: quem não leva jeito, por mais que freqüente escolinhas, etc., nunca chegará a Pelé.
Na aviação, muitas coisas ou até a maior parte delas são fruto de treinamento, esforço, repetição. O próprio voar já é uma ação contrária a tudo que é natural em nós. Temos que domesticar nossos instintos, às vezes ir contra eles, usar a razão, repetir, repetir, até que nossas ações se constituam como que num outro instinto . E isso não se consegue com saldo gordo na conta. Ajuda a pagar as horas e mais horas de treinamento, mas não é a varinha mágica.
Ao que parece, nenhum dos acidentes graves que tivemos em 2009 envolveu os básicos.
Não deve ser meramente acaso. Tampouco significa que os pilotos de básicos sejam ases. Pode apenas demonstrar que estejam fazendo a coisa certa: subindo a escada pelo degrau de baixo.
Não é vergonhoso ter humildade. Não faz mal à saúde pilotar um basiquinho, depois um avançado. Preserva o bem-estar assumir que o reluzente avião hangarado ainda deve ficar repousando ou ser pilotado apenas por quem realmente esteja apto.
Mas que deve ser gostoso fazer acrobacia, isso deve ...
segunda-feira, 23 de novembro de 2009
Deoclécio Peão Voador - Chegando ao Curso
CHEGANDO AO CURSO
Deoclécio, o peão-aluno, Xuxa a égua transporte e quebra-galho, Ventania o cusco fiel, caçador de bichos e cadelas, formavam um trio de dar inveja pela felicidade que irradiava de rosto, cara e focinho de cada um.
O peão era o mais feliz dos gaúchos pela iminente aventura de, logo, no mais, estar galopeando pelos céus, tropereando nuvens. A égua Xuxa estava feliz por dar uma variada nos horizontes, saindo das cercanias da Fazenda do seu Ponciano. Já o cusco Ventania, além de correr pereás pelas beiras do corredor, sonhava em ver os filhos que plantara no ventre da cadela-mascote do Aeroclube.
Nem viram que o destino se aproximava. As luzes da cidade do Alegrete estavam “muy cercas”. Num tapa e percorriam a estradinha que vai do asfalto até os hangares e demais dependências do Aeroclube.
Ainda era noite, com o leve surgir da barra alaranjada do dia, quando chegaram. Deoclécio apeou, empeçou a desencilhar a montaria, livrou-a do freio. Aproveitando o laço de doze braças, oito tentos, dos bons, trançado no capricho por um guasqueiro de primeira, lá das bandas do Quaraí, usando o cabresto prendeu a companheira de jornadas junto a uma grama de “sustância”. Isto fez cravando uma estaca bem no meio do gramado caprichosamente conservado pelo pessoal da entidade...
Embaixo dum cinamomo estendeu a carona sobre a grama ainda úmida de sereno, depois o enxergão, os pelegos, fungou de satisfação pela boa viagem feita, que taura macho não suspira. Deu início, então, aos trâsmites necessários ao fechamento de um palheiro mata-rato dos melhores, com fumo-de-corda do Sobradinho, palha-de-milho da Palmeira e avio de fogo, dos que usam uma estopa embebida em gasolina de auto.
Pitou com calma, conversando baixinho com a Xuxa:
- Não me leva a mal, mas de vereda troco o meio de transporte. Esse trecho que levamo quagi treis hora, eu, de apareio, faço em menos de dez minuto. Só que apareio não se presta pressas cosa de barranco. Ansim, teje livre da preocupação com eu te abandoná. Mesmo adespoi de credenciado como piloto, nunca vô te esquecê. Se uma cosa não sô, é ingrato.
Nisto chega o Ventania, acompanhado da Chandelle, a mascote, e uma penca de Ventaniazinhos, que, se fossem xerox do guaipeca, não sairiam tão iguais. Orgulhoso, o cusco trouxe mulher e filhos para apresentar ao dono, como que dizendo:
- A minha parte está feita. São oito descendentes. E tu, que só fica nessas barranqueações e nem um filhote de peão teve a serventia de fazer. Te caparam ou teve caxumba?
Entre peão e cachorro a comunicação realmente funcionava. O Deoclécio entendeu o olhar gozador do guaipeca, deu-se conta do desaforo e em vez de acariciar o patriarca Ventania, fazer um afaguinhos nos filhotes e na mãe, lascou um laçaço de relho no atrevido que, sabedor da arte que fizera, nem reclamou muito. Mal deu um ganido, só para não enfurecer de vez o peão e, prudentemente, reuniu a família, afastando-se para local onde a soiteira do relho não pudesse chegar.
- Havéra de se vê... Até o guaipeca me desaforando por causa de não tê casado ainda. Mas tirá china da zona é que não vô. Ou me aparece prenda de fundamento, ou morro solito. E agora, então, com essas despesa de curso, de hora de apareio é que a cosa encrespa de vez.
Entre pensamentos e prosa solitária nem se deu conta de que já haviam chegado outros alunos. Ao erguer os olhos, levou um prisco, ficou encabulado, tentou disfarçar, cumprimentando os chegantes:
- Buenas. Também viéro se perpará para os exame teórico do curso de apareio?
- Buenos-dias, responderam. É, vamos ver se conseguimos passar nas provas desta vez, que na outra banca levamos fumo.
- Falando em fumo, tenho um loco de especial.
Um gurizote, desses que vão parar em aeroclube empurrados pelo pai para se livrar do serviço militar, mas que nada querem com a vida a não ser aprontar, entusiasmou-se e foi logo se candidatando.
- Pô cara, pelas tuas roupas nunca que ia imaginar que tu gostasses dum baseado. Tô nessa.
E lá sabia o Deoclécio o que era baseado?
Na maior inocência fechou outro palheiro no capricho, sendo que o povoeiro, muito do boca-aberta, nem se deu conta do tipo de baseado que estava no apronte.
O peão deu uma tragada, dessas em que a fumaça expelida poderia ser vista a dezenas de metros, fez uma cara de satisfação e estendeu o palheiro ao amigo.
Esse agiu como é de costume. Encheu os pulmões, trancou o nariz, para prender o fumacê e, quando se deu conta de que não era o que esperava, estava feita a porqueira.
Cada brônquio de seu delicado pulmãozinho reagiu energicamente ao corpo estranho.
Em ânsia de morte o fumaceiro destrancou o nariz delicado, atirou longe o palheiro e entrou num acesso de tosse, que nenhuma gripe-do-porco poderia causar parecido.
Enquanto o maconheirozinho se finava de tossir, o Deoclécio, ofendido desde os mais remotos ancestrais até os descendentes tetranetos, vendo seu palheiro jogado fora, calmamente, lançou mão do relho e, numa precisão de atirador de elite, lascou o primeiro laçaço bem no meio do costilhar do desinfeliz tossidor ...
- Agora tu aprende a fazê poço caso prum gaúcho de minha iguala! Seu nulidade de bosta!
O segundo relhaço atingiu a orelha do guri, que, começou a sangrar e a chorar feito criança.
Os demais não sabiam o que fazer. Na cinta do peão luzia o cano do tresoito. Defender o guri era uma temeridade. Deixar apanhando, seria um massacre.
Nisto o ex-pretendente a isenção do serviço militar atinou com a utilidade das pernas e sebo-nas-canelas, desistiu para todo o sempre da nem iniciada carreira de piloto ...
O gaudério deu uns passos calmamente, agachou-se, juntou o palheiro, reacendeu e, no seu jeito pausado, invitou os presentes:
- Bueno, já que ele não quis, pitemo nosotros.
Deu uma baforada, ofereceu ao que se encontrava pelo lado de montar, iniciando a primeira roda aeropalheira de que se tem notícia.
Dizem que ninguém recusou ...
Deoclécio, o peão-aluno, Xuxa a égua transporte e quebra-galho, Ventania o cusco fiel, caçador de bichos e cadelas, formavam um trio de dar inveja pela felicidade que irradiava de rosto, cara e focinho de cada um.
O peão era o mais feliz dos gaúchos pela iminente aventura de, logo, no mais, estar galopeando pelos céus, tropereando nuvens. A égua Xuxa estava feliz por dar uma variada nos horizontes, saindo das cercanias da Fazenda do seu Ponciano. Já o cusco Ventania, além de correr pereás pelas beiras do corredor, sonhava em ver os filhos que plantara no ventre da cadela-mascote do Aeroclube.
Nem viram que o destino se aproximava. As luzes da cidade do Alegrete estavam “muy cercas”. Num tapa e percorriam a estradinha que vai do asfalto até os hangares e demais dependências do Aeroclube.
Ainda era noite, com o leve surgir da barra alaranjada do dia, quando chegaram. Deoclécio apeou, empeçou a desencilhar a montaria, livrou-a do freio. Aproveitando o laço de doze braças, oito tentos, dos bons, trançado no capricho por um guasqueiro de primeira, lá das bandas do Quaraí, usando o cabresto prendeu a companheira de jornadas junto a uma grama de “sustância”. Isto fez cravando uma estaca bem no meio do gramado caprichosamente conservado pelo pessoal da entidade...
Embaixo dum cinamomo estendeu a carona sobre a grama ainda úmida de sereno, depois o enxergão, os pelegos, fungou de satisfação pela boa viagem feita, que taura macho não suspira. Deu início, então, aos trâsmites necessários ao fechamento de um palheiro mata-rato dos melhores, com fumo-de-corda do Sobradinho, palha-de-milho da Palmeira e avio de fogo, dos que usam uma estopa embebida em gasolina de auto.
Pitou com calma, conversando baixinho com a Xuxa:
- Não me leva a mal, mas de vereda troco o meio de transporte. Esse trecho que levamo quagi treis hora, eu, de apareio, faço em menos de dez minuto. Só que apareio não se presta pressas cosa de barranco. Ansim, teje livre da preocupação com eu te abandoná. Mesmo adespoi de credenciado como piloto, nunca vô te esquecê. Se uma cosa não sô, é ingrato.
Nisto chega o Ventania, acompanhado da Chandelle, a mascote, e uma penca de Ventaniazinhos, que, se fossem xerox do guaipeca, não sairiam tão iguais. Orgulhoso, o cusco trouxe mulher e filhos para apresentar ao dono, como que dizendo:
- A minha parte está feita. São oito descendentes. E tu, que só fica nessas barranqueações e nem um filhote de peão teve a serventia de fazer. Te caparam ou teve caxumba?
Entre peão e cachorro a comunicação realmente funcionava. O Deoclécio entendeu o olhar gozador do guaipeca, deu-se conta do desaforo e em vez de acariciar o patriarca Ventania, fazer um afaguinhos nos filhotes e na mãe, lascou um laçaço de relho no atrevido que, sabedor da arte que fizera, nem reclamou muito. Mal deu um ganido, só para não enfurecer de vez o peão e, prudentemente, reuniu a família, afastando-se para local onde a soiteira do relho não pudesse chegar.
- Havéra de se vê... Até o guaipeca me desaforando por causa de não tê casado ainda. Mas tirá china da zona é que não vô. Ou me aparece prenda de fundamento, ou morro solito. E agora, então, com essas despesa de curso, de hora de apareio é que a cosa encrespa de vez.
Entre pensamentos e prosa solitária nem se deu conta de que já haviam chegado outros alunos. Ao erguer os olhos, levou um prisco, ficou encabulado, tentou disfarçar, cumprimentando os chegantes:
- Buenas. Também viéro se perpará para os exame teórico do curso de apareio?
- Buenos-dias, responderam. É, vamos ver se conseguimos passar nas provas desta vez, que na outra banca levamos fumo.
- Falando em fumo, tenho um loco de especial.
Um gurizote, desses que vão parar em aeroclube empurrados pelo pai para se livrar do serviço militar, mas que nada querem com a vida a não ser aprontar, entusiasmou-se e foi logo se candidatando.
- Pô cara, pelas tuas roupas nunca que ia imaginar que tu gostasses dum baseado. Tô nessa.
E lá sabia o Deoclécio o que era baseado?
Na maior inocência fechou outro palheiro no capricho, sendo que o povoeiro, muito do boca-aberta, nem se deu conta do tipo de baseado que estava no apronte.
O peão deu uma tragada, dessas em que a fumaça expelida poderia ser vista a dezenas de metros, fez uma cara de satisfação e estendeu o palheiro ao amigo.
Esse agiu como é de costume. Encheu os pulmões, trancou o nariz, para prender o fumacê e, quando se deu conta de que não era o que esperava, estava feita a porqueira.
Cada brônquio de seu delicado pulmãozinho reagiu energicamente ao corpo estranho.
Em ânsia de morte o fumaceiro destrancou o nariz delicado, atirou longe o palheiro e entrou num acesso de tosse, que nenhuma gripe-do-porco poderia causar parecido.
Enquanto o maconheirozinho se finava de tossir, o Deoclécio, ofendido desde os mais remotos ancestrais até os descendentes tetranetos, vendo seu palheiro jogado fora, calmamente, lançou mão do relho e, numa precisão de atirador de elite, lascou o primeiro laçaço bem no meio do costilhar do desinfeliz tossidor ...
- Agora tu aprende a fazê poço caso prum gaúcho de minha iguala! Seu nulidade de bosta!
O segundo relhaço atingiu a orelha do guri, que, começou a sangrar e a chorar feito criança.
Os demais não sabiam o que fazer. Na cinta do peão luzia o cano do tresoito. Defender o guri era uma temeridade. Deixar apanhando, seria um massacre.
Nisto o ex-pretendente a isenção do serviço militar atinou com a utilidade das pernas e sebo-nas-canelas, desistiu para todo o sempre da nem iniciada carreira de piloto ...
O gaudério deu uns passos calmamente, agachou-se, juntou o palheiro, reacendeu e, no seu jeito pausado, invitou os presentes:
- Bueno, já que ele não quis, pitemo nosotros.
Deu uma baforada, ofereceu ao que se encontrava pelo lado de montar, iniciando a primeira roda aeropalheira de que se tem notícia.
Dizem que ninguém recusou ...
O trânsito que o Barbosa enfrenta em suas entradas e saídas rumo ao trabalho ...
Tenho a intenção de resgatar um pouco da história da aviação leve, desportiva e geral do Sul do Brasil. Quem tiver algum material, tipo fotos, reportagens, depoimentos, etc, favor enviar para o meu e-mail, vilsombarbosa@terra.com.br . Também gostaria de falar sobre os atuais clubes de ultraleves, pilotos, instrutores, etc. Se você quer divulgar seu aeroclube, escola, turma de pilotos, entre em contato.
domingo, 21 de junho de 2009
Movimentos Friamente Calculados
MOVIMENTOS FRIAMENTE CALCULADOS
O manicaca que vos escreve sempre que vai fazer alguma coisa, o faz em “movimentos friamente calculados”. E provo-lho:
Surgiu a necessidade ou oportunidade de fazer um vôo longo, partindo de S.Vicente do Sul, que, como se sabe, fica no centro do RS. A partir de tal centro, deveria ir a Alegrete, depois Uruguaiana, já na fronteira com a Argentina, curvar à direita e subir o Uruguai até Itaqui, daí curvando noventa graus novamente à direita, rumar a Maçambará e, somente depois, aproar S. Vicente.
Fazer tudo isso num aviãozinho com motor de Brasília (o fusca de traje social), com um carburadorzinho 32mm, ignição única, ainda que eletrônica, exige uma certa dose de coragem e, por que não?, de loucura.
Coragem e loucura até acho que tenho um pouco, embora ainda não rasgue dinheiro, até por não ter o que rasgar ... Mas também tenho um estoque regular de juízo ...Por isso, vou, mas não muito. Se dá para amenizar riscos, por que não o fazer?
Bom, uma excelente forma de eliminar ou espantar zebras é um preparo cuidadoso do avião para um vôo desses.
E, vejam, reservei um dia inteiro para tal preparo.
Até parece que estava adivinhando.
Fui dar uma checada geral antes de partir para a troca de óleo, ajuste de correias, abastecimento, etc.
E o que me saltou aos olhos. Corrijo: deixou de saltar aos olhos? A capa do pitot!
“Se pode dar errado, vai dar errado”, diz a lei de Murphy.
Umas formigas haviam escolhido para construir seu ninho justamente o tubo desprotegido e haviam feito uma espécie de porta com uma membrana de material não aeronáutico, poremente muito formigáutico.
Prudentemente achei melhor buscar um aramezinho para tentar romper o lacre puxando para fora.
Munido da ferramenta, lá fui desvirginar o tubo de Pitot. Só que o hímen, apesar de todo o meu cuidado, foi ser tocado e, pronto, misteriosamente sumiu para dentro do tubo.
Bem, vamos lá desconectar o velocímetro, para depois tentar fazer qualquer outra coisa. Já aí começou o suplício: os parafusos estavam em local de difícil acesso, a mangueirinha estava encravada, etc. e tal. Depois de mais de hora de briga, estava o tubo finalmente livre, para receber um sopro de ar, para limpeza. Só que as formigas haviam trabalhado a sério e quando mais soprava, mais resistente ficava a vedação hermética.
A solução seria apelar prum aramezinho, a fim de que rompesse o tal entupimento. E quem disse que o arame conseguia fazer as curvas do tubinho? Lá se foram quase duas horas, até que atinei em usar um cabinho de aço, mais flexível e menos dobradiço, se é que dá para entender.
O tal cabo-de-aço foi devidamente surripiado do varal de roupas. Sei não, mas quando a patroa voltar, acho que vou levar um puxão de orelhas, na melhor das hipóteses.
Resumindo, quando terminei a briga com o pitot, já não restava tempo para troca de óleo etc, etc. Somente na manhã seguinte.
No dia posterior, consegui dar conta do recado e o avião ficou pronto, nos trinques, louco para sair voando.
Mas o que se sucedeu no outro dia.
Amanheceu uma cerração ...
Assim, já se haviam ido dois dias, consumidos com o pitot e a cerração.
No sábado à noite quase não dormi, torcendo pelo bom tempo.
A torcida foi tanta que o dia amanheceu ensolarado, uma beleza.
Mas só amanheceu, porque mal tomei o café e já começou um nevoeiro ...
Ai, meus anzóis. Lá se vai outro dia.
E sapateava em roda do avião. Ia para a pista, olhava horizontes, nuvens, ventos, janelas no céu, etc.
De repente, abriu-se.
É agora: dei hélice, entrei, fiz o CIGEMAC e me mandei para a cabeceira. Lá chegando as nuvens já estavam querendo me tirar de vôo de novo. Insisti, dei uma corrida na pista e, ao voltar, sensatamente resolvi render-me aos caprichos da natureza.
Estava já conformado em somente voar na primavera, verão, sei lá, quando clareou-se o mundo e, dessa vez, de forma a permitir a decolagem com segurança.
Lá se foi o Lambe-Lambe no 15 BIS, às 10 e 45, quando queria decolar às oito e pouco, e dois dias antes ...
Os dias já andam curtos nessa época do ano. Fazer toda essa volteada que já descrevi e voltar antes do anoitecer, decolando quase perto das onze, era um desafio e tanto.
Se virasse um vento de proa?
Ainda bem que iniciava com um sopro traseiro, o que fazia o irmão mais novo do 14 BIS andar em respeitáveis 125, 130 km de velocidade solo. Mas minha preocupação era com a volta. Esse mesmo ventinho iria me travar um monte.
A primeira perna era Alegrete, direto. Em cinq”uenta minutos estava pealada a coruja. A seguir aproar Uruguaiana. O vento continuava camarada e me empurrava para a fronteira. Era como se o Brasil quisesse me exportar para “los hermanos” argentinos. Incluídas as voltinhas, etc, em duas horas e pouco lá estava eu sobrevoando as margens do rio Uruguai.
Se pousasse ali, perderia no mínimo uns quarenta minutos, com reabastecimento, etc. Ir a Itaqui direto era a melhor pedida, mas a vontade de achar umas macegas para desaguar era grande ... Tinha também a questão da gasolina. Daria? Pelos meus cálculos, sim. Mas tem horas que a gente começa a não confiar muito neles, especialmente quando já se está há três horas brigando com o vento e as térmicas, afrouxando até as unhas ... de tanto sacudir.
O consumo do 15 BIS é de 11 a 12 litros por hora. Seu tanque é de 60 litros, assim, dá para voar com segurança até quatro horas. Mas quem garante que o consumo neste vôo é igual? E se estiver consumindo 15 litros por hora? Aí a autonomia até a pane seca despenca para quatro horas, mas tem a história de voar até a alternativa e ter mais quarenta e cinco minutos...
Infelizmente quase ninguém respeita. O vovô aqui, até que se esforça. Sempre chego com os tais quarenta minutos na reserva.
A previsão era de chegar a Itaqui com três horas e 15 minutos, o que se confirmou e não houve grandes sustos.
Havia porém que conseguir carro ou patinete para ir a um posto comprar gasosa. Fazer um lanchezinho rápido, reabastecer, checar e decolar.
Dar umas voltas sobre a cidade e se mandar para Maçambará, que eu nunca vira nem mais gorda.
E na fronteira é tudo igual. Pampa, agora arrozal a perder-se de vista. Tudo parecido. Se a gente se desorientar, babaus. Pro lado que aproar, é a mesmíssima coisa da direção anterior. Há que haver muita atenção com detalhezinhos, árvores, curvinha de sanga, etc, para, em caso de pane de GPS, prosseguir no rumo certo. E, confiar na bússola, especialmente a minha, adquirida a cinco reais num camelódromo. O pior é que é muito mais precisa e confiável do que a que veio com a aeronave, devidamente certificada como aeronáutica ... Nela tem proas onde a declinação chega a 30 graus.
Como Maçambará é pequena, qualquer errinho, lá ficaria o Lambe-Lambe, plantado no meio dum arrozal, por não visualizar a cidade.
Bem, quando terminei minhas volteadinhas sobre a cidadezinha, já passava das quatro da tarde e eu devia retornar ao lar, com vento de proa.
Apontei o nariz do avião, e o meu ladrão de oxigênio também, para a querência, consultei o GPS e faltavam uma hora e quarenta e nove minutos.
“Chego pelas seis. Como o Sol se põe às seis e vinte, tenho quase meia hora para o vento me segurar, que ainda chego tanq”uilo.
E me vim, perdendo uns 10 km horários com o ventinho de frente.
O final de tarde era poético, bonito, mas quase não aproveitei, pois o vento podia aumentar e, quase no final, voaria uns quinze minutos sobre serra. Pane ali, com pouca visibilidade ...
Quando chegou a dita, embora houvesse subido um pouco, mesmo assim, a turbulência orográfica começou a sacudir bastante o tequinho.
O grande problema dessas turbulências é que a gente nunca tem certeza do “tamanho” delas. Pode ser uma leve tremidinha e pode ser uma paulada ...
A gente é obrigado a engolir em seco, a menos que seja um bocó que não tenha um certo senso de avaliação das possibilidades.
Sempre avaliando um jeito de retornar, ou pousar num local não tão hostil, o sobrevôo de uma zona de paliteiro, num motorzinho Volkswagen, mil novecentos e antigamente, causa um certo aperto de órgãos vitais ...
O Sol baixando, no meio da Serra, uma turbulência controlável atacando o aviãozinho, a bunda tentando acelerar o banco, para chegar logo numa zona de campo, livre de ventos chacoalhantes, quem é consciente, sabe ...
Felizmente o tamanho da turbulência ficou no médio, apenas para testar os nervos do manicaca. Veio o campo, o ar estabilizou-se, mas estranhava a altura do Sol. Tão baixo.
E me vim.
Pousei com o Sol sumindo, conforme se pode ver na foto. Minha Internet não estava funcionando e não pudera consultar meteoro, antes de decolar. Não sei de onde tirei a informação de que o Sol se punha às seis e vinte da tarde, quando, na realidade, se punha às seis.
E aí está a prova de que “meus movimentos são friamente calculados”. Num vôo que era para ter começado na sexta, voltar para o pouso final, apenas dois minutos antes do limite, no domingo, é ou não é uma precisão de dar inveja?
O manicaca que vos escreve sempre que vai fazer alguma coisa, o faz em “movimentos friamente calculados”. E provo-lho:
Surgiu a necessidade ou oportunidade de fazer um vôo longo, partindo de S.Vicente do Sul, que, como se sabe, fica no centro do RS. A partir de tal centro, deveria ir a Alegrete, depois Uruguaiana, já na fronteira com a Argentina, curvar à direita e subir o Uruguai até Itaqui, daí curvando noventa graus novamente à direita, rumar a Maçambará e, somente depois, aproar S. Vicente.
Fazer tudo isso num aviãozinho com motor de Brasília (o fusca de traje social), com um carburadorzinho 32mm, ignição única, ainda que eletrônica, exige uma certa dose de coragem e, por que não?, de loucura.
Coragem e loucura até acho que tenho um pouco, embora ainda não rasgue dinheiro, até por não ter o que rasgar ... Mas também tenho um estoque regular de juízo ...Por isso, vou, mas não muito. Se dá para amenizar riscos, por que não o fazer?
Bom, uma excelente forma de eliminar ou espantar zebras é um preparo cuidadoso do avião para um vôo desses.
E, vejam, reservei um dia inteiro para tal preparo.
Até parece que estava adivinhando.
Fui dar uma checada geral antes de partir para a troca de óleo, ajuste de correias, abastecimento, etc.
E o que me saltou aos olhos. Corrijo: deixou de saltar aos olhos? A capa do pitot!
“Se pode dar errado, vai dar errado”, diz a lei de Murphy.
Umas formigas haviam escolhido para construir seu ninho justamente o tubo desprotegido e haviam feito uma espécie de porta com uma membrana de material não aeronáutico, poremente muito formigáutico.
Prudentemente achei melhor buscar um aramezinho para tentar romper o lacre puxando para fora.
Munido da ferramenta, lá fui desvirginar o tubo de Pitot. Só que o hímen, apesar de todo o meu cuidado, foi ser tocado e, pronto, misteriosamente sumiu para dentro do tubo.
Bem, vamos lá desconectar o velocímetro, para depois tentar fazer qualquer outra coisa. Já aí começou o suplício: os parafusos estavam em local de difícil acesso, a mangueirinha estava encravada, etc. e tal. Depois de mais de hora de briga, estava o tubo finalmente livre, para receber um sopro de ar, para limpeza. Só que as formigas haviam trabalhado a sério e quando mais soprava, mais resistente ficava a vedação hermética.
A solução seria apelar prum aramezinho, a fim de que rompesse o tal entupimento. E quem disse que o arame conseguia fazer as curvas do tubinho? Lá se foram quase duas horas, até que atinei em usar um cabinho de aço, mais flexível e menos dobradiço, se é que dá para entender.
O tal cabo-de-aço foi devidamente surripiado do varal de roupas. Sei não, mas quando a patroa voltar, acho que vou levar um puxão de orelhas, na melhor das hipóteses.
Resumindo, quando terminei a briga com o pitot, já não restava tempo para troca de óleo etc, etc. Somente na manhã seguinte.
No dia posterior, consegui dar conta do recado e o avião ficou pronto, nos trinques, louco para sair voando.
Mas o que se sucedeu no outro dia.
Amanheceu uma cerração ...
Assim, já se haviam ido dois dias, consumidos com o pitot e a cerração.
No sábado à noite quase não dormi, torcendo pelo bom tempo.
A torcida foi tanta que o dia amanheceu ensolarado, uma beleza.
Mas só amanheceu, porque mal tomei o café e já começou um nevoeiro ...
Ai, meus anzóis. Lá se vai outro dia.
E sapateava em roda do avião. Ia para a pista, olhava horizontes, nuvens, ventos, janelas no céu, etc.
De repente, abriu-se.
É agora: dei hélice, entrei, fiz o CIGEMAC e me mandei para a cabeceira. Lá chegando as nuvens já estavam querendo me tirar de vôo de novo. Insisti, dei uma corrida na pista e, ao voltar, sensatamente resolvi render-me aos caprichos da natureza.
Estava já conformado em somente voar na primavera, verão, sei lá, quando clareou-se o mundo e, dessa vez, de forma a permitir a decolagem com segurança.
Lá se foi o Lambe-Lambe no 15 BIS, às 10 e 45, quando queria decolar às oito e pouco, e dois dias antes ...
Os dias já andam curtos nessa época do ano. Fazer toda essa volteada que já descrevi e voltar antes do anoitecer, decolando quase perto das onze, era um desafio e tanto.
Se virasse um vento de proa?
Ainda bem que iniciava com um sopro traseiro, o que fazia o irmão mais novo do 14 BIS andar em respeitáveis 125, 130 km de velocidade solo. Mas minha preocupação era com a volta. Esse mesmo ventinho iria me travar um monte.
A primeira perna era Alegrete, direto. Em cinq”uenta minutos estava pealada a coruja. A seguir aproar Uruguaiana. O vento continuava camarada e me empurrava para a fronteira. Era como se o Brasil quisesse me exportar para “los hermanos” argentinos. Incluídas as voltinhas, etc, em duas horas e pouco lá estava eu sobrevoando as margens do rio Uruguai.
Se pousasse ali, perderia no mínimo uns quarenta minutos, com reabastecimento, etc. Ir a Itaqui direto era a melhor pedida, mas a vontade de achar umas macegas para desaguar era grande ... Tinha também a questão da gasolina. Daria? Pelos meus cálculos, sim. Mas tem horas que a gente começa a não confiar muito neles, especialmente quando já se está há três horas brigando com o vento e as térmicas, afrouxando até as unhas ... de tanto sacudir.
O consumo do 15 BIS é de 11 a 12 litros por hora. Seu tanque é de 60 litros, assim, dá para voar com segurança até quatro horas. Mas quem garante que o consumo neste vôo é igual? E se estiver consumindo 15 litros por hora? Aí a autonomia até a pane seca despenca para quatro horas, mas tem a história de voar até a alternativa e ter mais quarenta e cinco minutos...
Infelizmente quase ninguém respeita. O vovô aqui, até que se esforça. Sempre chego com os tais quarenta minutos na reserva.
A previsão era de chegar a Itaqui com três horas e 15 minutos, o que se confirmou e não houve grandes sustos.
Havia porém que conseguir carro ou patinete para ir a um posto comprar gasosa. Fazer um lanchezinho rápido, reabastecer, checar e decolar.
Dar umas voltas sobre a cidade e se mandar para Maçambará, que eu nunca vira nem mais gorda.
E na fronteira é tudo igual. Pampa, agora arrozal a perder-se de vista. Tudo parecido. Se a gente se desorientar, babaus. Pro lado que aproar, é a mesmíssima coisa da direção anterior. Há que haver muita atenção com detalhezinhos, árvores, curvinha de sanga, etc, para, em caso de pane de GPS, prosseguir no rumo certo. E, confiar na bússola, especialmente a minha, adquirida a cinco reais num camelódromo. O pior é que é muito mais precisa e confiável do que a que veio com a aeronave, devidamente certificada como aeronáutica ... Nela tem proas onde a declinação chega a 30 graus.
Como Maçambará é pequena, qualquer errinho, lá ficaria o Lambe-Lambe, plantado no meio dum arrozal, por não visualizar a cidade.
Bem, quando terminei minhas volteadinhas sobre a cidadezinha, já passava das quatro da tarde e eu devia retornar ao lar, com vento de proa.
Apontei o nariz do avião, e o meu ladrão de oxigênio também, para a querência, consultei o GPS e faltavam uma hora e quarenta e nove minutos.
“Chego pelas seis. Como o Sol se põe às seis e vinte, tenho quase meia hora para o vento me segurar, que ainda chego tanq”uilo.
E me vim, perdendo uns 10 km horários com o ventinho de frente.
O final de tarde era poético, bonito, mas quase não aproveitei, pois o vento podia aumentar e, quase no final, voaria uns quinze minutos sobre serra. Pane ali, com pouca visibilidade ...
Quando chegou a dita, embora houvesse subido um pouco, mesmo assim, a turbulência orográfica começou a sacudir bastante o tequinho.
O grande problema dessas turbulências é que a gente nunca tem certeza do “tamanho” delas. Pode ser uma leve tremidinha e pode ser uma paulada ...
A gente é obrigado a engolir em seco, a menos que seja um bocó que não tenha um certo senso de avaliação das possibilidades.
Sempre avaliando um jeito de retornar, ou pousar num local não tão hostil, o sobrevôo de uma zona de paliteiro, num motorzinho Volkswagen, mil novecentos e antigamente, causa um certo aperto de órgãos vitais ...
O Sol baixando, no meio da Serra, uma turbulência controlável atacando o aviãozinho, a bunda tentando acelerar o banco, para chegar logo numa zona de campo, livre de ventos chacoalhantes, quem é consciente, sabe ...
Felizmente o tamanho da turbulência ficou no médio, apenas para testar os nervos do manicaca. Veio o campo, o ar estabilizou-se, mas estranhava a altura do Sol. Tão baixo.
E me vim.
Pousei com o Sol sumindo, conforme se pode ver na foto. Minha Internet não estava funcionando e não pudera consultar meteoro, antes de decolar. Não sei de onde tirei a informação de que o Sol se punha às seis e vinte da tarde, quando, na realidade, se punha às seis.
E aí está a prova de que “meus movimentos são friamente calculados”. Num vôo que era para ter começado na sexta, voltar para o pouso final, apenas dois minutos antes do limite, no domingo, é ou não é uma precisão de dar inveja?
sexta-feira, 2 de janeiro de 2009
Furando o Pôr-do-Sol
“Esse negócio de nunca furar o pôr-do-Sol é coisa de bundão. Pilotinho que só sabe voar pelo manual e que não tem coragem de aceitar desafios.
Nada como vir para a pista com a noite quase feita um breu, meio pelo rumo, pelo instinto. Sentir a emoção de, errada a aproximação, saber que a segunda será um vôo cego, com a quase-certeza dum placaço, quebra do avião, hospital ou repouso perene. Aí é que está o bom de voar: encharcar-se de adrenalina até o nariz e viver a forte sensação de driblar a ceifeira.
Era o que eu pensava até fazer esse vôo.
Agora aqui estou, suando frio, voando pelo ronco do motor, tentando manter o ultraleve nivelado, curvando ou pensando curvar derrapado para não entrar num parafuso, torcendo para que alguém da cidade se flagre que estou com problemas e vá ao aeroporto, iluminar com carro, pelo menos um pedaço de chão para que eu possa, outra vez, sentir terra firme sob meus pés.
Para completar saí com apenas um quarto de tanque, coisa de menos de uma hora de vôo até a baba. Já estou aqui em cima há mais de trinta minutos, pois decolei às oito e quarenta e cinco, quinze minutos depois do Sol posto.
São nove e dezessete.
Logo, logo, o motor vai tossir.
Fico em cima da cidade para ver se alguém me ajuda, e, se der pane seca, me estampo contra algum edifício? Ou vou para os arredores da pista, onde tenho alguma chance de só destruir o avião e sair com poucos danos pessoais?
Acho melhor ir logo para uma área desabitada, torcer para que nenhuma árvore, antena, casa, galpão, equipamento agrícola ou, mesmo, uma simples vaca se atravesse no meu caminho de pouso.
O que fazer para evitar o estol sem ter o ronco do motor, somente com o sibiliar do vento relativo, como referência para calcular a velocidade?
Não seria melhor ir para pouso enquanto ainda tenho motor e não ficar esperando ajuda de faróis salvadores?
Ah, finalmente, parece que alguém está indo para o Aeroclube, lá longe, quase no horizonte.
Bem, vou para lá, sigo a luz e tento o pouso. Acho que há chance.
E torcer pela multiplicação da gasolina. Que ela dê para chegar lá.
A luz continua indo.
Na direção certa.
O Natal vai ser com avião inteiro, piloto ileso, família feliz, sabendo que nunca mais vou aprontar, que devo ter aprendido a lição.
Mas a tosse do motor apareceu. Vou dar umas sacudidas para pegar a última molécula de combustível.
Com o que conseguir de combustível, seguir a luz.
O motor voltou a roncar firme. Vamos, meu amigo, me ajuda, bebe pouco, me leva até a segurança da pista.
Mas avião sempre corresponde ao trato que lhe é dado. Se dei pouco combustível, saí a voar no escuro, que posso esperar?
Agora não ficou somente na tosse. Parou, mesmo.
Só o vento e o latejar das têmporas marcando o compasso de meu desespero.
A luz cada vez mais forte.
E mais distante.
E vai se alongando no horizonte, é quase um cometa que cruza rápido.
No desespero aprôo seu núcleo e tento segui-lo.
Sei que em instantes algo vai acontecer. O tocar do trem-de-pouso no solo, a ponta de asa batendo numa árvore, o enroscar-se numa rede elétrica.
O coração bate como um bumbo. O vento silencia.
A luz caminha no horizonte e consigo segui-la, mesmo sem motor.
O silêncio aterrador transforma-se num mar de tranq”uilidade. Vôo num rumo que não sei qual é e não temo o que vai chegar em instantes.
Então ouço o choro.
Um choro de alegria. Anúncio de vida que chega.
Não sei como consegui pousar num galpão. Inacreditável, mas estou vivo, dentro dum tambo-de-leite.
Vacas mansas mugem ao serem acordadas pelo estrondo do ultraleve quebrando as asas contra as paredes laterais.
O choro continua.
Não consigo me desprender do cinto.
Ainda bem que não tenho mais combustível para isto tudo explodir. É, mas o motor ainda está quente e estou no meio dum monte de palha usada como forrageira. Se o escapamento encostar, não escapo.
O choro de criança continua.
Quando pára, a criança fala:
- Conseguiste seguir a Luz?
Prosseguiu:
- Deverias ter ouvido os que te pediam para não voar. Mas, já que erraste, e todos erramos, somente restou te enviar a indicação do caminho. Ainda bem que acreditaste que ali estava tua salvação.
- Mesmo que tenhas me rejeitado tantas vezes.
- Lembras daquela vez em que um vendedor de bala, guri dos seus sete anos, vileiro, nariz ranhento, desrespeitou a cerca divisória, quase se atravessou na frente da hélice e foi implorar: “Tio, me leva prá avuá”? E teve como resposta um xingão, por se meter onde não era chamado.
- Eu queria voar de "saco" e fui rejeitado, como quase sempre fazem comigo.
- Aquela vez em que um ventão te pegou de jeito. Parecia que não sobraria um parafuso inteiro. E, de repente, sem qualquer explicação, saíste da turbulência, entrando num zona de atmosfera calma, os comando dóceis, voando lisinho?
- Chegaste cantando marra no aeroclube. Que fazias e acontecias. Que não era qualquer vento que te derrubava.
- E o dia do fogo? O vazamento de gasolina sobre o magneto que se estancou espontaneamente?
- Mas tu é que eras o bom, o melhor, o que encarava ventos, navegações arriscadas, proximidade de CBs, o supra-sumo da pilotagem.
- Tudo era mérito do ás, que julgavas ser.
- Arrogante, achavas um saco levar alguém de “saco”. Nunca puseste uma criança pobre no teu ultraleve “que esses vileiros são capazes de me encher o avião de piolho e vomitar”.
- Mas vileira com os peitinhos em formação, corpo de menina desabrochando em mulher, essas, ah, essas nunca iriam vomitar, nunca deixariam piolho no ultraleve. Só que vomitaram. E deixaram mais do que piolho. Deixaram o piloto cheio de chatos... Também tenho meu lado humano e não poderia deixar passar esta ...
- Te achavas o dono do mundo. Piloto conhecido, com fama de louco e audaz.
- O rei da cocada-preta. A melhor bolacha do pacote.
- Mas a noite te pegou. A escuridão tomou conta de teu mundo. Não sabias onde estavas nem para onde ir. Nem no pavor te lembraste de mim. Afinal, eras ou não um macho?
- Macho ou não perdeste a batalha.
- E a guerra.
- Quem és, agora?
- Apenas um homem todo quebrado ao lado duma manjedoura, ouvindo um nenê chorão a te passar um pito.
- É o dia de meu aniversário. Todos dão presentes a todos, menos para mim. Ricos dão presentes a ricos que de nada precisam, mas não aos desalojados de Santa Catarina, que precisam de tudo.
- Ultralevistas continuam voando, mas não se dispuseram a dar o equivalente a dois tanques de combustível aos que ficaram sem casa, sem comida, sem roupa.
- As lojas estão entupidas de gente comprando. O décimo-terceiro evapora, mas não nos lembramos de que, para uma criança de rua, a única chance de realizar o sonho de voar é algum piloto convidá-la. E esse seria o maior e mais feliz Natal dessa criança.
- Agora não interessa o motivo, o certo é que aqui estás.
- Por descuido. Por teimosia. Por imprudência.
- No meu aniversário vieste, apavorado, quase morto, visitar-me.
- O único a ouvir o chamado da Luz. Ela cruzou o mundo todo, mas somente tu a seguiste.
- Por isso, por seres o único que veio ao meu aniversário eu te abençôo.
- Daqui para a frente, sempre que a situação tornar-se desesperadora, espicha o teu olhar.
- Em algum lugar estará a Estrela-Guia. Ela te levará a um aeroporto seguro e poderás comemorar o meu aniversário ainda muitas vezes.
- Nunca te esqueças: embora não gostes, sempre voarei de “saco”. Às vezes disfarçado, quase sempre invisível, mas nunca te deixarei só, pois foste o único que veio à minha festa.
- Vieste de alma limpa, leve. Livre da tua arrogância e pretensão.
- Vê se no ano que vem traz todos os teus amigos pilotos. Venham em formação, seguindo a Estrela da verdadeira humildade, que aqui teremos o Natal mais feliz de todos os que cruzam os céus deste mundo.
- Num estábulo, com vacas mugindo, com a paz inundando nossos corações.
“Esse negócio de nunca furar o pôr-do-Sol é coisa de bundão. Pilotinho que só sabe voar pelo manual e que não tem coragem de aceitar desafios.
Nada como vir para a pista com a noite quase feita um breu, meio pelo rumo, pelo instinto. Sentir a emoção de, errada a aproximação, saber que a segunda será um vôo cego, com a quase-certeza dum placaço, quebra do avião, hospital ou repouso perene. Aí é que está o bom de voar: encharcar-se de adrenalina até o nariz e viver a forte sensação de driblar a ceifeira.
Era o que eu pensava até fazer esse vôo.
Agora aqui estou, suando frio, voando pelo ronco do motor, tentando manter o ultraleve nivelado, curvando ou pensando curvar derrapado para não entrar num parafuso, torcendo para que alguém da cidade se flagre que estou com problemas e vá ao aeroporto, iluminar com carro, pelo menos um pedaço de chão para que eu possa, outra vez, sentir terra firme sob meus pés.
Para completar saí com apenas um quarto de tanque, coisa de menos de uma hora de vôo até a baba. Já estou aqui em cima há mais de trinta minutos, pois decolei às oito e quarenta e cinco, quinze minutos depois do Sol posto.
São nove e dezessete.
Logo, logo, o motor vai tossir.
Fico em cima da cidade para ver se alguém me ajuda, e, se der pane seca, me estampo contra algum edifício? Ou vou para os arredores da pista, onde tenho alguma chance de só destruir o avião e sair com poucos danos pessoais?
Acho melhor ir logo para uma área desabitada, torcer para que nenhuma árvore, antena, casa, galpão, equipamento agrícola ou, mesmo, uma simples vaca se atravesse no meu caminho de pouso.
O que fazer para evitar o estol sem ter o ronco do motor, somente com o sibiliar do vento relativo, como referência para calcular a velocidade?
Não seria melhor ir para pouso enquanto ainda tenho motor e não ficar esperando ajuda de faróis salvadores?
Ah, finalmente, parece que alguém está indo para o Aeroclube, lá longe, quase no horizonte.
Bem, vou para lá, sigo a luz e tento o pouso. Acho que há chance.
E torcer pela multiplicação da gasolina. Que ela dê para chegar lá.
A luz continua indo.
Na direção certa.
O Natal vai ser com avião inteiro, piloto ileso, família feliz, sabendo que nunca mais vou aprontar, que devo ter aprendido a lição.
Mas a tosse do motor apareceu. Vou dar umas sacudidas para pegar a última molécula de combustível.
Com o que conseguir de combustível, seguir a luz.
O motor voltou a roncar firme. Vamos, meu amigo, me ajuda, bebe pouco, me leva até a segurança da pista.
Mas avião sempre corresponde ao trato que lhe é dado. Se dei pouco combustível, saí a voar no escuro, que posso esperar?
Agora não ficou somente na tosse. Parou, mesmo.
Só o vento e o latejar das têmporas marcando o compasso de meu desespero.
A luz cada vez mais forte.
E mais distante.
E vai se alongando no horizonte, é quase um cometa que cruza rápido.
No desespero aprôo seu núcleo e tento segui-lo.
Sei que em instantes algo vai acontecer. O tocar do trem-de-pouso no solo, a ponta de asa batendo numa árvore, o enroscar-se numa rede elétrica.
O coração bate como um bumbo. O vento silencia.
A luz caminha no horizonte e consigo segui-la, mesmo sem motor.
O silêncio aterrador transforma-se num mar de tranq”uilidade. Vôo num rumo que não sei qual é e não temo o que vai chegar em instantes.
Então ouço o choro.
Um choro de alegria. Anúncio de vida que chega.
Não sei como consegui pousar num galpão. Inacreditável, mas estou vivo, dentro dum tambo-de-leite.
Vacas mansas mugem ao serem acordadas pelo estrondo do ultraleve quebrando as asas contra as paredes laterais.
O choro continua.
Não consigo me desprender do cinto.
Ainda bem que não tenho mais combustível para isto tudo explodir. É, mas o motor ainda está quente e estou no meio dum monte de palha usada como forrageira. Se o escapamento encostar, não escapo.
O choro de criança continua.
Quando pára, a criança fala:
- Conseguiste seguir a Luz?
Prosseguiu:
- Deverias ter ouvido os que te pediam para não voar. Mas, já que erraste, e todos erramos, somente restou te enviar a indicação do caminho. Ainda bem que acreditaste que ali estava tua salvação.
- Mesmo que tenhas me rejeitado tantas vezes.
- Lembras daquela vez em que um vendedor de bala, guri dos seus sete anos, vileiro, nariz ranhento, desrespeitou a cerca divisória, quase se atravessou na frente da hélice e foi implorar: “Tio, me leva prá avuá”? E teve como resposta um xingão, por se meter onde não era chamado.
- Eu queria voar de "saco" e fui rejeitado, como quase sempre fazem comigo.
- Aquela vez em que um ventão te pegou de jeito. Parecia que não sobraria um parafuso inteiro. E, de repente, sem qualquer explicação, saíste da turbulência, entrando num zona de atmosfera calma, os comando dóceis, voando lisinho?
- Chegaste cantando marra no aeroclube. Que fazias e acontecias. Que não era qualquer vento que te derrubava.
- E o dia do fogo? O vazamento de gasolina sobre o magneto que se estancou espontaneamente?
- Mas tu é que eras o bom, o melhor, o que encarava ventos, navegações arriscadas, proximidade de CBs, o supra-sumo da pilotagem.
- Tudo era mérito do ás, que julgavas ser.
- Arrogante, achavas um saco levar alguém de “saco”. Nunca puseste uma criança pobre no teu ultraleve “que esses vileiros são capazes de me encher o avião de piolho e vomitar”.
- Mas vileira com os peitinhos em formação, corpo de menina desabrochando em mulher, essas, ah, essas nunca iriam vomitar, nunca deixariam piolho no ultraleve. Só que vomitaram. E deixaram mais do que piolho. Deixaram o piloto cheio de chatos... Também tenho meu lado humano e não poderia deixar passar esta ...
- Te achavas o dono do mundo. Piloto conhecido, com fama de louco e audaz.
- O rei da cocada-preta. A melhor bolacha do pacote.
- Mas a noite te pegou. A escuridão tomou conta de teu mundo. Não sabias onde estavas nem para onde ir. Nem no pavor te lembraste de mim. Afinal, eras ou não um macho?
- Macho ou não perdeste a batalha.
- E a guerra.
- Quem és, agora?
- Apenas um homem todo quebrado ao lado duma manjedoura, ouvindo um nenê chorão a te passar um pito.
- É o dia de meu aniversário. Todos dão presentes a todos, menos para mim. Ricos dão presentes a ricos que de nada precisam, mas não aos desalojados de Santa Catarina, que precisam de tudo.
- Ultralevistas continuam voando, mas não se dispuseram a dar o equivalente a dois tanques de combustível aos que ficaram sem casa, sem comida, sem roupa.
- As lojas estão entupidas de gente comprando. O décimo-terceiro evapora, mas não nos lembramos de que, para uma criança de rua, a única chance de realizar o sonho de voar é algum piloto convidá-la. E esse seria o maior e mais feliz Natal dessa criança.
- Agora não interessa o motivo, o certo é que aqui estás.
- Por descuido. Por teimosia. Por imprudência.
- No meu aniversário vieste, apavorado, quase morto, visitar-me.
- O único a ouvir o chamado da Luz. Ela cruzou o mundo todo, mas somente tu a seguiste.
- Por isso, por seres o único que veio ao meu aniversário eu te abençôo.
- Daqui para a frente, sempre que a situação tornar-se desesperadora, espicha o teu olhar.
- Em algum lugar estará a Estrela-Guia. Ela te levará a um aeroporto seguro e poderás comemorar o meu aniversário ainda muitas vezes.
- Nunca te esqueças: embora não gostes, sempre voarei de “saco”. Às vezes disfarçado, quase sempre invisível, mas nunca te deixarei só, pois foste o único que veio à minha festa.
- Vieste de alma limpa, leve. Livre da tua arrogância e pretensão.
- Vê se no ano que vem traz todos os teus amigos pilotos. Venham em formação, seguindo a Estrela da verdadeira humildade, que aqui teremos o Natal mais feliz de todos os que cruzam os céus deste mundo.
- Num estábulo, com vacas mugindo, com a paz inundando nossos corações.
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