domingo, 21 de junho de 2009

Movimentos Friamente Calculados

MOVIMENTOS FRIAMENTE CALCULADOS

O manicaca que vos escreve sempre que vai fazer alguma coisa, o faz em “movimentos friamente calculados”. E provo-lho:

Surgiu a necessidade ou oportunidade de fazer um vôo longo, partindo de S.Vicente do Sul, que, como se sabe, fica no centro do RS. A partir de tal centro, deveria ir a Alegrete, depois Uruguaiana, já na fronteira com a Argentina, curvar à direita e subir o Uruguai até Itaqui, daí curvando noventa graus novamente à direita, rumar a Maçambará e, somente depois, aproar S. Vicente.

Fazer tudo isso num aviãozinho com motor de Brasília (o fusca de traje social), com um carburadorzinho 32mm, ignição única, ainda que eletrônica, exige uma certa dose de coragem e, por que não?, de loucura.

Coragem e loucura até acho que tenho um pouco, embora ainda não rasgue dinheiro, até por não ter o que rasgar ... Mas também tenho um estoque regular de juízo ...Por isso, vou, mas não muito. Se dá para amenizar riscos, por que não o fazer?

Bom, uma excelente forma de eliminar ou espantar zebras é um preparo cuidadoso do avião para um vôo desses.

E, vejam, reservei um dia inteiro para tal preparo.

Até parece que estava adivinhando.

Fui dar uma checada geral antes de partir para a troca de óleo, ajuste de correias, abastecimento, etc.

E o que me saltou aos olhos. Corrijo: deixou de saltar aos olhos? A capa do pitot!

“Se pode dar errado, vai dar errado”, diz a lei de Murphy.

Umas formigas haviam escolhido para construir seu ninho justamente o tubo desprotegido e haviam feito uma espécie de porta com uma membrana de material não aeronáutico, poremente muito formigáutico.

Prudentemente achei melhor buscar um aramezinho para tentar romper o lacre puxando para fora.

Munido da ferramenta, lá fui desvirginar o tubo de Pitot. Só que o hímen, apesar de todo o meu cuidado, foi ser tocado e, pronto, misteriosamente sumiu para dentro do tubo.

Bem, vamos lá desconectar o velocímetro, para depois tentar fazer qualquer outra coisa. Já aí começou o suplício: os parafusos estavam em local de difícil acesso, a mangueirinha estava encravada, etc. e tal. Depois de mais de hora de briga, estava o tubo finalmente livre, para receber um sopro de ar, para limpeza. Só que as formigas haviam trabalhado a sério e quando mais soprava, mais resistente ficava a vedação hermética.

A solução seria apelar prum aramezinho, a fim de que rompesse o tal entupimento. E quem disse que o arame conseguia fazer as curvas do tubinho? Lá se foram quase duas horas, até que atinei em usar um cabinho de aço, mais flexível e menos dobradiço, se é que dá para entender.

O tal cabo-de-aço foi devidamente surripiado do varal de roupas. Sei não, mas quando a patroa voltar, acho que vou levar um puxão de orelhas, na melhor das hipóteses.

Resumindo, quando terminei a briga com o pitot, já não restava tempo para troca de óleo etc, etc. Somente na manhã seguinte.

No dia posterior, consegui dar conta do recado e o avião ficou pronto, nos trinques, louco para sair voando.

Mas o que se sucedeu no outro dia.

Amanheceu uma cerração ...

Assim, já se haviam ido dois dias, consumidos com o pitot e a cerração.

No sábado à noite quase não dormi, torcendo pelo bom tempo.

A torcida foi tanta que o dia amanheceu ensolarado, uma beleza.

Mas só amanheceu, porque mal tomei o café e já começou um nevoeiro ...

Ai, meus anzóis. Lá se vai outro dia.

E sapateava em roda do avião. Ia para a pista, olhava horizontes, nuvens, ventos, janelas no céu, etc.

De repente, abriu-se.

É agora: dei hélice, entrei, fiz o CIGEMAC e me mandei para a cabeceira. Lá chegando as nuvens já estavam querendo me tirar de vôo de novo. Insisti, dei uma corrida na pista e, ao voltar, sensatamente resolvi render-me aos caprichos da natureza.

Estava já conformado em somente voar na primavera, verão, sei lá, quando clareou-se o mundo e, dessa vez, de forma a permitir a decolagem com segurança.

Lá se foi o Lambe-Lambe no 15 BIS, às 10 e 45, quando queria decolar às oito e pouco, e dois dias antes ...

Os dias já andam curtos nessa época do ano. Fazer toda essa volteada que já descrevi e voltar antes do anoitecer, decolando quase perto das onze, era um desafio e tanto.

Se virasse um vento de proa?

Ainda bem que iniciava com um sopro traseiro, o que fazia o irmão mais novo do 14 BIS andar em respeitáveis 125, 130 km de velocidade solo. Mas minha preocupação era com a volta. Esse mesmo ventinho iria me travar um monte.

A primeira perna era Alegrete, direto. Em cinq”uenta minutos estava pealada a coruja. A seguir aproar Uruguaiana. O vento continuava camarada e me empurrava para a fronteira. Era como se o Brasil quisesse me exportar para “los hermanos” argentinos. Incluídas as voltinhas, etc, em duas horas e pouco lá estava eu sobrevoando as margens do rio Uruguai.

Se pousasse ali, perderia no mínimo uns quarenta minutos, com reabastecimento, etc. Ir a Itaqui direto era a melhor pedida, mas a vontade de achar umas macegas para desaguar era grande ... Tinha também a questão da gasolina. Daria? Pelos meus cálculos, sim. Mas tem horas que a gente começa a não confiar muito neles, especialmente quando já se está há três horas brigando com o vento e as térmicas, afrouxando até as unhas ... de tanto sacudir.
O consumo do 15 BIS é de 11 a 12 litros por hora. Seu tanque é de 60 litros, assim, dá para voar com segurança até quatro horas. Mas quem garante que o consumo neste vôo é igual? E se estiver consumindo 15 litros por hora? Aí a autonomia até a pane seca despenca para quatro horas, mas tem a história de voar até a alternativa e ter mais quarenta e cinco minutos...

Infelizmente quase ninguém respeita. O vovô aqui, até que se esforça. Sempre chego com os tais quarenta minutos na reserva.

A previsão era de chegar a Itaqui com três horas e 15 minutos, o que se confirmou e não houve grandes sustos.

Havia porém que conseguir carro ou patinete para ir a um posto comprar gasosa. Fazer um lanchezinho rápido, reabastecer, checar e decolar.

Dar umas voltas sobre a cidade e se mandar para Maçambará, que eu nunca vira nem mais gorda.

E na fronteira é tudo igual. Pampa, agora arrozal a perder-se de vista. Tudo parecido. Se a gente se desorientar, babaus. Pro lado que aproar, é a mesmíssima coisa da direção anterior. Há que haver muita atenção com detalhezinhos, árvores, curvinha de sanga, etc, para, em caso de pane de GPS, prosseguir no rumo certo. E, confiar na bússola, especialmente a minha, adquirida a cinco reais num camelódromo. O pior é que é muito mais precisa e confiável do que a que veio com a aeronave, devidamente certificada como aeronáutica ... Nela tem proas onde a declinação chega a 30 graus.

Como Maçambará é pequena, qualquer errinho, lá ficaria o Lambe-Lambe, plantado no meio dum arrozal, por não visualizar a cidade.

Bem, quando terminei minhas volteadinhas sobre a cidadezinha, já passava das quatro da tarde e eu devia retornar ao lar, com vento de proa.

Apontei o nariz do avião, e o meu ladrão de oxigênio também, para a querência, consultei o GPS e faltavam uma hora e quarenta e nove minutos.

“Chego pelas seis. Como o Sol se põe às seis e vinte, tenho quase meia hora para o vento me segurar, que ainda chego tanq”uilo.

E me vim, perdendo uns 10 km horários com o ventinho de frente.
O final de tarde era poético, bonito, mas quase não aproveitei, pois o vento podia aumentar e, quase no final, voaria uns quinze minutos sobre serra. Pane ali, com pouca visibilidade ...

Quando chegou a dita, embora houvesse subido um pouco, mesmo assim, a turbulência orográfica começou a sacudir bastante o tequinho.

O grande problema dessas turbulências é que a gente nunca tem certeza do “tamanho” delas. Pode ser uma leve tremidinha e pode ser uma paulada ...

A gente é obrigado a engolir em seco, a menos que seja um bocó que não tenha um certo senso de avaliação das possibilidades.

Sempre avaliando um jeito de retornar, ou pousar num local não tão hostil, o sobrevôo de uma zona de paliteiro, num motorzinho Volkswagen, mil novecentos e antigamente, causa um certo aperto de órgãos vitais ...

O Sol baixando, no meio da Serra, uma turbulência controlável atacando o aviãozinho, a bunda tentando acelerar o banco, para chegar logo numa zona de campo, livre de ventos chacoalhantes, quem é consciente, sabe ...

Felizmente o tamanho da turbulência ficou no médio, apenas para testar os nervos do manicaca. Veio o campo, o ar estabilizou-se, mas estranhava a altura do Sol. Tão baixo.

E me vim.

Pousei com o Sol sumindo, conforme se pode ver na foto. Minha Internet não estava funcionando e não pudera consultar meteoro, antes de decolar. Não sei de onde tirei a informação de que o Sol se punha às seis e vinte da tarde, quando, na realidade, se punha às seis.

E aí está a prova de que “meus movimentos são friamente calculados”. Num vôo que era para ter começado na sexta, voltar para o pouso final, apenas dois minutos antes do limite, no domingo, é ou não é uma precisão de dar inveja?