sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Furando o Pôr-do-Sol

“Esse negócio de nunca furar o pôr-do-Sol é coisa de bundão. Pilotinho que só sabe voar pelo manual e que não tem coragem de aceitar desafios.

Nada como vir para a pista com a noite quase feita um breu, meio pelo rumo, pelo instinto. Sentir a emoção de, errada a aproximação, saber que a segunda será um vôo cego, com a quase-certeza dum placaço, quebra do avião, hospital ou repouso perene. Aí é que está o bom de voar: encharcar-se de adrenalina até o nariz e viver a forte sensação de driblar a ceifeira.

Era o que eu pensava até fazer esse vôo.

Agora aqui estou, suando frio, voando pelo ronco do motor, tentando manter o ultraleve nivelado, curvando ou pensando curvar derrapado para não entrar num parafuso, torcendo para que alguém da cidade se flagre que estou com problemas e vá ao aeroporto, iluminar com carro, pelo menos um pedaço de chão para que eu possa, outra vez, sentir terra firme sob meus pés.

Para completar saí com apenas um quarto de tanque, coisa de menos de uma hora de vôo até a baba. Já estou aqui em cima há mais de trinta minutos, pois decolei às oito e quarenta e cinco, quinze minutos depois do Sol posto.

São nove e dezessete.

Logo, logo, o motor vai tossir.

Fico em cima da cidade para ver se alguém me ajuda, e, se der pane seca, me estampo contra algum edifício? Ou vou para os arredores da pista, onde tenho alguma chance de só destruir o avião e sair com poucos danos pessoais?

Acho melhor ir logo para uma área desabitada, torcer para que nenhuma árvore, antena, casa, galpão, equipamento agrícola ou, mesmo, uma simples vaca se atravesse no meu caminho de pouso.

O que fazer para evitar o estol sem ter o ronco do motor, somente com o sibiliar do vento relativo, como referência para calcular a velocidade?

Não seria melhor ir para pouso enquanto ainda tenho motor e não ficar esperando ajuda de faróis salvadores?

Ah, finalmente, parece que alguém está indo para o Aeroclube, lá longe, quase no horizonte.

Bem, vou para lá, sigo a luz e tento o pouso. Acho que há chance.

E torcer pela multiplicação da gasolina. Que ela dê para chegar lá.

A luz continua indo.
Na direção certa.

O Natal vai ser com avião inteiro, piloto ileso, família feliz, sabendo que nunca mais vou aprontar, que devo ter aprendido a lição.

Mas a tosse do motor apareceu. Vou dar umas sacudidas para pegar a última molécula de combustível.

Com o que conseguir de combustível, seguir a luz.

O motor voltou a roncar firme. Vamos, meu amigo, me ajuda, bebe pouco, me leva até a segurança da pista.

Mas avião sempre corresponde ao trato que lhe é dado. Se dei pouco combustível, saí a voar no escuro, que posso esperar?
Agora não ficou somente na tosse. Parou, mesmo.

Só o vento e o latejar das têmporas marcando o compasso de meu desespero.

A luz cada vez mais forte.

E mais distante.

E vai se alongando no horizonte, é quase um cometa que cruza rápido.

No desespero aprôo seu núcleo e tento segui-lo.

Sei que em instantes algo vai acontecer. O tocar do trem-de-pouso no solo, a ponta de asa batendo numa árvore, o enroscar-se numa rede elétrica.

O coração bate como um bumbo. O vento silencia.

A luz caminha no horizonte e consigo segui-la, mesmo sem motor.

O silêncio aterrador transforma-se num mar de tranq”uilidade. Vôo num rumo que não sei qual é e não temo o que vai chegar em instantes.

Então ouço o choro.

Um choro de alegria. Anúncio de vida que chega.

Não sei como consegui pousar num galpão. Inacreditável, mas estou vivo, dentro dum tambo-de-leite.

Vacas mansas mugem ao serem acordadas pelo estrondo do ultraleve quebrando as asas contra as paredes laterais.

O choro continua.

Não consigo me desprender do cinto.

Ainda bem que não tenho mais combustível para isto tudo explodir. É, mas o motor ainda está quente e estou no meio dum monte de palha usada como forrageira. Se o escapamento encostar, não escapo.

O choro de criança continua.

Quando pára, a criança fala:

- Conseguiste seguir a Luz?

Prosseguiu:

- Deverias ter ouvido os que te pediam para não voar. Mas, já que erraste, e todos erramos, somente restou te enviar a indicação do caminho. Ainda bem que acreditaste que ali estava tua salvação.

- Mesmo que tenhas me rejeitado tantas vezes.

- Lembras daquela vez em que um vendedor de bala, guri dos seus sete anos, vileiro, nariz ranhento, desrespeitou a cerca divisória, quase se atravessou na frente da hélice e foi implorar: “Tio, me leva prá avuá”? E teve como resposta um xingão, por se meter onde não era chamado.

- Eu queria voar de "saco" e fui rejeitado, como quase sempre fazem comigo.

- Aquela vez em que um ventão te pegou de jeito. Parecia que não sobraria um parafuso inteiro. E, de repente, sem qualquer explicação, saíste da turbulência, entrando num zona de atmosfera calma, os comando dóceis, voando lisinho?

- Chegaste cantando marra no aeroclube. Que fazias e acontecias. Que não era qualquer vento que te derrubava.

- E o dia do fogo? O vazamento de gasolina sobre o magneto que se estancou espontaneamente?

- Mas tu é que eras o bom, o melhor, o que encarava ventos, navegações arriscadas, proximidade de CBs, o supra-sumo da pilotagem.

- Tudo era mérito do ás, que julgavas ser.

- Arrogante, achavas um saco levar alguém de “saco”. Nunca puseste uma criança pobre no teu ultraleve “que esses vileiros são capazes de me encher o avião de piolho e vomitar”.

- Mas vileira com os peitinhos em formação, corpo de menina desabrochando em mulher, essas, ah, essas nunca iriam vomitar, nunca deixariam piolho no ultraleve. Só que vomitaram. E deixaram mais do que piolho. Deixaram o piloto cheio de chatos... Também tenho meu lado humano e não poderia deixar passar esta ...

- Te achavas o dono do mundo. Piloto conhecido, com fama de louco e audaz.

- O rei da cocada-preta. A melhor bolacha do pacote.

- Mas a noite te pegou. A escuridão tomou conta de teu mundo. Não sabias onde estavas nem para onde ir. Nem no pavor te lembraste de mim. Afinal, eras ou não um macho?

- Macho ou não perdeste a batalha.

- E a guerra.

- Quem és, agora?

- Apenas um homem todo quebrado ao lado duma manjedoura, ouvindo um nenê chorão a te passar um pito.

- É o dia de meu aniversário. Todos dão presentes a todos, menos para mim. Ricos dão presentes a ricos que de nada precisam, mas não aos desalojados de Santa Catarina, que precisam de tudo.

- Ultralevistas continuam voando, mas não se dispuseram a dar o equivalente a dois tanques de combustível aos que ficaram sem casa, sem comida, sem roupa.

- As lojas estão entupidas de gente comprando. O décimo-terceiro evapora, mas não nos lembramos de que, para uma criança de rua, a única chance de realizar o sonho de voar é algum piloto convidá-la. E esse seria o maior e mais feliz Natal dessa criança.

- Agora não interessa o motivo, o certo é que aqui estás.

- Por descuido. Por teimosia. Por imprudência.

- No meu aniversário vieste, apavorado, quase morto, visitar-me.

- O único a ouvir o chamado da Luz. Ela cruzou o mundo todo, mas somente tu a seguiste.

- Por isso, por seres o único que veio ao meu aniversário eu te abençôo.

- Daqui para a frente, sempre que a situação tornar-se desesperadora, espicha o teu olhar.

- Em algum lugar estará a Estrela-Guia. Ela te levará a um aeroporto seguro e poderás comemorar o meu aniversário ainda muitas vezes.

- Nunca te esqueças: embora não gostes, sempre voarei de “saco”. Às vezes disfarçado, quase sempre invisível, mas nunca te deixarei só, pois foste o único que veio à minha festa.

- Vieste de alma limpa, leve. Livre da tua arrogância e pretensão.

- Vê se no ano que vem traz todos os teus amigos pilotos. Venham em formação, seguindo a Estrela da verdadeira humildade, que aqui teremos o Natal mais feliz de todos os que cruzam os céus deste mundo.

- Num estábulo, com vacas mugindo, com a paz inundando nossos corações.